sábado, 16 de janeiro de 2010

Capitão Rodrigo

Nelson Rodrigues dizia que toda unanimidade é burra. Já concordei com isso. Hoje não. Por exemplo: não tem nada de burro na unanimidade de se reconhecer que Machado de Assis é grande. Muitos citam como seu escritor favorito. Sem dúvida, é um dos meus heróis. Mas eu tenho de me render ao fato de que meu escritor favorito é Érico Veríssimo, apesar de eu ter lido muito menos coisa do Érico do que do Machado. Não tem como uma pessoa ler mais de 15 vezes o mesmo livro de um autor, no caso, Olhai os Lírios do Campo, e achar que gosta de outro. Ou ler todos os livros da série "O Tempo e o Vento" e ficar pensando dias e dias no Capitão Rodrigo, ou querendo ser Ana Terra, e pensar que Machado é o favorito.

Eu comprei a versão compacta da série O Tempo e o Vento em DVD, que foi ao ar na Globo em 1985. Meu irmão gravou a série em VHS para mim, na época. Mas eu precisei de fitas para gravar a corrida do Ayrton no Brasil em 1991 - pois fui ao autódromo e na pista a gente não vê toda a corrida. Meu pai, que tinha e tem umas sovinices que eu não entendo, ao invés de me dar uma fita VHS nova, mandou eu me virar. E eu apaguei uma parte de O Tempo e O Vento. Detalhe: meu pai deve ter até hoje fitas VHS virgens, sem uso... Vai entender.

O Tempo e o Vento é uma obra curiosa. Ao mesmo tempo que tem a marca regional, retratando a formação do Rio Grande do Sul, fala de temas universais, que podemos entender mesmo vivendo na China. Mas não vou fazer aqui uma análise literária, porque sou incompente para isso. O que eu realmente queria era declarar meu amor ao Capitão Rodrigo.

Eu comecei, de uns anos para cá, a admirar personagens que não são nada, nada politicamente corretas. Eu sempre fui CDF e sempre fui certinha. A chata da turma. Aquela que não joga lixo no chão, que não cabula aula, que não desobedece pai e mãe, que se preocupar em não prejudicar o outro, que leva a sério o ditado que diz "onde termina seu espaço começa o meu" ou " não faça com os outros o que não quer que façam com você." Sendo assim, admirava pessoas que agiam sempre de maneira correta. E meus heróis nos livros eram os mocinhos.

Havia exceção. Uma delas era minha admiração pelo Capitão. Eu sempre oscilei entre ser boa menina e uma garota levada. Sempre me comportei bem, por medo de ser rejeitada por pais, irmão, tios, tias, primos etc. Só que eu sempre quis fazer o oposto. Quando me diziam para não começar a namorar durante o ginásio e o colegial, porque atrapalharia meus estudos, eu pensava que devia fazer o oposto. Quando me falavam pra não fumar e não beber, eu achava que devia experimentar. Quando me diziam que eu não podia cabular aula e eu via as meninas descoladas da escola indo pra Romero no Pilequinho, eu pensava no quão chata era minha vida. Eu era fã de Madonna, e de repente larguei a diva pop e fui ser fã de Ayrton Senna - mais politicamente correto impossível.

Contudo, no geral, mais por medo e menos por convicção de que era aquele o meu caminho, a boa menina venceu todas as batalhas e a substituição de Madonna por Ayrton foi muito simbólica nessa luta entre a boa e a má menina, entre a garota que quer ser discreta e aquela leonina típica que eu deveria ser, aquela que chega chegando e que todo mundo vê e presta atenção, que todos podem amar ou odiar, mas nunca ficar indiferente.

Quando eu entrei no primeiro ano da escola, no primário, eu tinha dois namoradinhos. Dois. Não era só um. Eram dois. E eles brigavam por mim. Um deles me seguia de bicicleta, me escrevia cartas, era romântico incurável. Eu era assim aos seis anos. Chamava a atenção a ponto de ter dois namorados. Até agora eu não sei onde essa menina foi parar. Acho que me perdi dela entre as humilhações na rua de casa e as que ouvi da minha própria família, que deve ter, de forma inconsciente talvez, agido para minar meu potencial de ser essa menina, pois ela daria muito trabalho e que família quer ter trabalho, né?

Até hoje, eu percebo que a menina má está sempre rondando, esperando que a boa dê uma chance para ela mostrar as garras. Ela quer surgir usando roupas provocantes, bijus douradas, maquiagens e saltos, quer chegar e ser notada, quer ter coragem para dizer "amem ou me odeiem, mas falem de mim" e ser feliz com isso, sabendo que críticas virão e que ela vai suportar todas sem ligar. Quer pegar todos os caras que achar que vale a pena, encher a cara sem culpa, se acabar de dançar na pista e se acharem que ela é piranha por isso, foda-se. E é essa má menina que gosta dos bad boys a la Capitão Rodrigo.

Agora, tendo vivido metade da minha vida, começo a admirar ainda mais os que erram. Os que arriscam e erram e levantam, sacodem a poeira e erram de novo. E continuam sendo amados e admirados por isso. O Capitão Rodrigo de Veríssimo era assim: não gostava de trabalhar, só de lutar, guerrear. Não era fiel, não gostava da ideia do casamento, era péssimo pai (a filha recém-nascida morre e ele está jogando carteado e enchendo o caneco), era ateu, não respeitava nem o padre, que era seu amigo. Mas ninguém lhe era indiferente. Mesmo sendo assim, teve o amor incondicional de Bibiana e amizades verdadeiras, como a do cunhado Juvenal, que mesmo vendo o camarada pisar na bola com a irmã, não arrefeceu em sua amizade um centímetro que fosse.

Capitão Rodrigo era um bravo. Tinha coragem e sustentava toda sua petulância e orgulho. Não tinha medo. Era um destemido. E era justo. Queria dividir as terras dos estancieiros entre pobres e negros. Era a favor da abolição e de que se tratasse gente como gente. No exército, era um dos melhores que existia, condecorado. Mesmo quando tentava fazer as coisas direito, era incompreendido, como quando tentou chamar Bibiana para a dança e o Amaral não deixou, provocando um duelo que terminou em deslealdade, com o Capitão baleado em uma luta que seria apenas com punhal.

Momento vergonhoso, mas enfim, é parte da minha vida... Me lembro que o "primeiro amor da minha vida", em termos fictícios, foi o personagem do Erick Strada em Chips. Outro foi o Robby, do Menudo. E depois veio a paixão fulminante e definitiva por Patrick Swayze, ao ver o clip da música-tema de Dirty Dancing. Aí tive o Ayrton e esse continua sendo o líder. Todos bons meninos, certo? Tá, o personagem do Chips era mulherengo, mas ele saía com uma mulher de cada vez... Era honesto.

Não me lembro de ter me apaixonado por nenhum personagem de livro, apesar de ler demais da conta. Contudo, entre o Robby e o Patrick, eu li parte da obra O Tempo e o Vento e fui apresentada ao Capitão Rodrigo. Que depois foi personificado por Tarcísio Meira na televisão e eu tenho a mais absoluta certeza de que ninguém conseguiria fazer um Capitão Rodrigo tão igual ao Capitão criado por Veríssimo do que o Tarcísio. Para mim, foi o melhor papel que o Tarcísio fez em toda sua carreira. Não tem outro Capitão Rodrigo que não seja o Tarcísio. Igual Conan: só o Arnold pode fazer. Igual Corleonne, só o Brando pode ser O Padrinho.

O que gosto em personagens assim como o Capitão é exatamente isso: não são bons nem maus. São humanos. Mesmo que fictícios, são humanos. Não são heróis por serem sempre bonzinhos. Não são vilões porque só praticam a maldade. São seres admiráveis. Não são personalidades planas e fáceis de se entender. Não são personagens que você apenas ama ou odeia, mas que te leva a amar e a odiar de uma cena para outra. Adoro encontrar esses personagens complexos. O que me lembra Marlon Brando em Um Bonde Chamado Desejo, que é outro personagem que me levaria a escrever um post.. em outro momento.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

As aulas que não tive

Durante minha vida, não formulei planos que envolvessem qualquer tipo de relacionamento humano. Namoro, casamento, amizades, nada disso esteve ou está nos meus planos. Eu cresci ouvindo muitas coisas, como toda criança. Ouvi muitos nãos. Ouvi muitas críticas. Ouvi poucos elogios. A maioria deles acompanhado de um “na verdade, era sua obrigação ir bem”. Cresci em uma família que estimulava o menino que eu gostava a ficar com minha prima bonita de Minas. Eles eram o casal perfeito: ele muito inteligente e ela muito linda. Quando ele começou a gostar de mim e fez menção de me pedir em namoro para os meus pais, foi proibido de fazê-lo. Muitas fofocas rolaram e ele foi embora. E eu aprendi que meninas bonitas ficam com meninos bonitos e inteligentes.

Meninas como eu não fazem nada a não ser estudar, porque ninguém se interessa por meninas como eu. E quando se interessam, estão atrapalhando os grandes planos que fizeram para essa menina e que não incluem um rapaz do lado. Na verdade, os plano não incluíam ninguém, porque qualquer um seria distração para atingir o objetivo de fazer a menina construir seu futuro, que era estudar e ter profissão para poder se sustentar. Porque para mim não viam muito futuro: ou não ia me casar porque ninguém ia me querer, ou ia casar, mas ia me separar, porque sou insuportável e o cara ia acabar saindo com outras e tals. De forma que eu precisava me manter sozinha.

E depois desse primeiro menino, veio o grande amor da minha vida, aquele que nunca se apaga. Mas ele não se lembrava de mim na escola, a frase perfeita para me definir. Fato é que minha mãe sempre me dizia que eu me achava a rainha da Inglaterra, quando eu voltava da rua chorando por alguma humilhação sofrida no meio das crianças dos vizinhos. Minha mãe dizia que eu achava que elas estavam falando de mim, mas não estavam, porque eu não era tão importante assim. Que ninguém me notava, na verdade, eu que era paranóica. E que eu ia acabar sozinha porque eu não conseguia fazer amigos. Até hoje eu choro quando eu escuto a voz da minha mãe me dizendo essas coisas...

Bem, se você ouve da pessoa que supostamente mais deveria te amar nesse mundo que você não é importante e que as pessoas não falam de você porque você simplesmente não existe para elas, fica difícil você achar que existe para alguém. Cresci assim. Querendo não existir. Querendo não ser notada. Querendo que as coisas acabassem logo. E não foi surpresa ouvir que não se lembrava de mim na escola. Aliás, foi o que de menos cruel eu já ouvi de pessoas de quem eu gostei de verdade. Ele podia ter aproveitado que eu gostava tanto dele para me fazer de boba. Me humilhar. Se divertir às minhas custas. Mas não, ele não foi cruel comigo como tantas vezes haviam sido. Ele simplesmente disse que não se lembrava de mim e cada um foi para o seu lado.

Apesar de eu ter ficado triste e achado desnecessário ele falar aquilo, também fiquei aliviada por ver que ele não iria me submeter a uma humilhação pública e inesquecível só porque achava divertido ver alguém sendo humilhado. Ele era assim, falava o que pensava e resolvia tudo, não deixava nada pendente. E uma vez resolvido, ele deixava para trás. Talvez ele tenha ganhado meu respeito por ter sido a primeira pessoa que não gostava de mim, mas que me tratou como gente. Não xingou, não humilhou, não se aproveitou... Só disse uma frase e encerrou a conversa. Para sempre.

Tenho consciência de que o dito pela minha mãe não é verdade. Hoje sou adulta e posso até me defender melhor das coisas. Mas o fato é que eu cresci assim, sendo um nada. Afundei nos estudos e me relaciono bem com livros, mas não com pessoas. Sou um desastre com pessoas. Nunca sei o que dizer ou o que fazer. Porque eu não era importante, então eu não me relacionei com muita gente e evitei muito tipo de experiência para não sentir a mesma dor de quando criança. E hoje a mesma família que me criou para ser o que sou hoje, bem-sucedida em termos profissionais e financeiros, capaz de me manter sozinha, me deseja um grande amor de presente de natal e de ano novo. Parece que querem que eu faça uma operação de raiz quadrada quando eu sequer aprendi a somar direito. Todo mundo se incomoda com minha solidão. Todo mundo fica falando que eu preciso “encontrar um amor”, como se eu quisesse isso ou soubesse como arrumar algo assim.

Na verdade, minha tristeza é saber que eu não sei amar porque eu pulei as etapas, porque eu não aprendi a somar, subtrair, multiplicar e dividir, pra depois passar para operações mais complexas como a raiz quadrada. Daí eu voltar no tempo para saber o que aconteceu de verdade em 1990. Porque com ele eu tive a única e última oportunidade de começar a aprender a amar. Depois dele, eu fui tentando fazer divisão sem saber multiplicar e as contas terminaram todas erradas. Tem coisas que precisam ser vividas para serem aprendidas e para a gente levar para frente. Eu não tive essa oportunidade. Quando ele disse que não se lembrava de mim na escola, e depois ele foi embora daqui para sempre, eu entendi que aqueles eram sinais de que eu não vim para essa vida para aprender a amar. Eu vim para aprender muitas coisas, mas amar não era uma delas.

Tanto não sei amar que perdi um primo muito querido no começo de dezembro. Chorei, fiquei triste, mas muito mais pela dor das outras pessoas - filhos, a mãe dele, as irmãs - do que por sentir algum amor por ele. Acho que eu não amo ninguém, no final das contas. Não sei como fazer isso, amar as pessoas, seja homens, seja parentes, amigos, seja quem for. Fugi de todas as aulas. E quando não fugi, minha família ou a vida fez o favor de tirar a sala de aula ou o professor do meu caminho. Não tem coisa mais triste nesse mundo do que um ser humano que não sabe amar e não ama...