sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Diálogo entre um alemão bêbado e uma estudante medíocre de Geografia

A vantagem de bater o carro - estou tentando sempre ver o lado positivo das coisas, numa dessas clássicas decisões de ano novo que a gente promete cumprir e que foi tomada há uns aninhos - é que eu me sinto cidadã e moradora de São Paulo. Explico: no carro, sou eu, eu mesma e sem nenhuma Irene. Eu, em um carro com cinco lugares que transporta apenas um ser humano. E eu sempre estou de passagem pela cidade. Não posso me distrair, pois como provei, bato o carro. Não observo a cidade nem sua gente. Não me comunico com ninguém, raramente uso celular enquanto dirigo. Enfim, fico isolada dentro do carro, passando por lugares. São Paulo, da janela do meu carro, é simplesmente um lugar de passagem. Mas não é assim quando estou no ônibus, caminhando até o ponto ou até o metrô, ou dentro do metrô. Nessa situação "desmotorizada", eu me sinto como uma pessoa da cidade. Olho paisagens, gentes, muito interessante a minha Sampa. Gosto de falar obrigada ao motorista do microônibus, de pedir licença para descer do metrô, de olhar as pessoas e imaginar as vidas que levam etc.

Bem, tem os contratempos. Eu sou uma moça muuuuuito sortuda: todo bêbado, quando entra no ônibus ou no metrô, vai se sentar ou ficar em pé do meu lado. E vai, invariavelmente, puxar papo. É uma sina. Lembro de 1994, eu morando na Zona Leste, estudando em São Bernardo do Campo e trabalhando no Limão. Eu passava praticamente cinco horas do meu dia dentro de condução. Tivemos uma greve de ônibus em São Paulo, mas dava para eu ir para a faculdade, no ABC, e ir para o trabalho usando trem, que não estava em greve. Pois peguei o trem, com amigas, e o vagão vazio. Na estação seguinte, entra um bêbado. Adivinha onde ele se sentou, apesar de ter vários lugares vazios? É, do lado da jacaré aqui. E começou a resmungar e babar e cair como se fosse deitar no meu colo. Afe, que coisa! Mudamos de lugar, claro.

Ontem, não foi diferente, exceto o fato de o metrô estar mais cheio e o bêbado ser uma figura interessante. Bem, senta-se ao meu lado aquela pessoa perfumada de cachaça... muito perfumada, até eu me senti bêbada. Eu estava lendo o segundo volume da excelente antologia de contos do Machado de Assis - outra vantagem de usar condução, você tem tempo para ler enquanto está na fila ou dentro do metrô. Continuei lendo. O sujeito, apesar de muito bêbado, conseguiu ler o nome do Machado na lombada do livro. Diálogo assistido por todos do metrô, inclusive um policial civil:

Bêbado (B), com forte sotaque de estrangeiro - Desculpa, viu?
Eu (E) - Tudo bem ( sem tirar os olhos do livro...)
B - Machado de Assis é muito bom, né?
E - É, é sim... (continuei lendo)
B - Eu gosto muito dele, é o melhor escritor brasileiro.
E - Ahãn...
B - Tem biografia dele?
E - (desisti de ler) Tem algumas sim, muito boas, mas não li nenhuma.

Resolvi olhar para ele. Aí fiquei com pena do senhor. Ali pelos 58 anos, cabelos grisalhos, olhos claros, o nariz com um machucado enorme e vermelho, como veias estouradas. Boné, camiseta, bermuda, papete, mochila. E o cheiro de pinga. E o sotaque forte que não o impede de falar um bom português.

B - Eu gosto muito do Brasil, sei tudo do país.
E - De onde o senhor é?
B - Da Alemanha, estou passeando.
E - De que lugar da Alemanha?
B - Do sul, do lago... (não entendi). Conhece a Alemanha?
E - Não, nunca saí do Brasil.
B - Eu sei a geografia de cor do Brasil... (desenhando com o dedo, no ar, o mapa do Brasil.)
E - (morrendo de vergonha porque estudo geografia e não sei nada...) Ah, mas a geografia da Europa é mais difícil de guardar, são muitos pequenos países.
B - Ah, o Brasil tem 29 Estados, tem mais estados do que a Europa.
E - Não são 27 estados no Brasil? (tentando manter um diálogo cabeça com um bêbado e me redimir dos erros géográficos...)
B - São. Mas a Europa tem menos países.
E - Será? Não tem algo como 22 países na União Européia hoje?
B - É...
E - O senhor volta quando para a Alemanha?
B - Em abril agora. Eu já morei aqui no Brasil, trabalhei 17 anos em São Paulo. Aí voltei para a Alemanha e agora vim passear.
E - Você tem família lá na Alemanha?
B - Ihhh, não... (com um gesto de mão dizendo, deixa disso..) Sou sozinho, totalmente sozinho.
E - (agora, realmente morrendo de pena e feliz por ter dado atenção ao bêbado alemão conversador) Puxa, então tem liberdade para viajar para qualquer lugar, né?
B - (sorrindo...)É, é sim. Bem, aqui é estação Sé, tenho de descer. Desculpa ter atrapalhado você. Muito obrigado pela conversa. Tenha um bom dia.
E - Que isso, eu que agradeço, um bom dia para o senhor também.

E lá seu foi o alemão, cheio de paixão... pelo Brasil...

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