Estava lembrando do Valdir, um vizinho meu de quando eu era criança. Ele morreu aos 24 anos, em 4 de fevereiro de 1988, depois de ter sofrido um acidente de carro no feriado de 25 de janeiro. Valdir foi o homem mais bonito que eu já pude ver de perto. Tem o Elvis Presley, pra mim, o ser masculino mais perfeito criado por Deus. Mas, claro, não conheci pessoalmente o Rei. Agora o Valdir eu conhecia.
Quando eu era pequenininha, ele dizia que ia se casar comigo. Depois, como já contei aqui, eu "desmanchei" à medida em que fui crescendo. E ele nunca mais pediu minha mão em casamento, claro, mas sempre foi carinhoso comigo. Era o único moço da rua que sempre me cumprimentava, desde criança. Ele era 10 anos mais velho do que eu, nasceu em 20 de julho de 1964. Leonino, como eu. Me chamava de "feinha", e eu o chamava de "feião." Primeiro, achei que ele tava debochando, mas não; ele me provocava só pra me ouvir chamá-lo de "feião". No fundo, ele sabia que de feio nunca teve nada e que eu estava querendo dizer o oposto.
Torci demais pela recuperação dele e sofri horrores naquela quinta-feira fria e "garoenta", quando, ali pelas 10h e pouco, avisaram que ele não tinha conseguido sair daquela. Na noite anterior, havíamos rezado um terço para ele. Mas tem pessoas que são perfeitas demais para ficar aqui. Acho que era o caso dele. Deus não nos ouviu. Fiquei a quinta inteira na expectativa do velório, queria muito vê-lo e me despedir dele. Ele chegou. A casa dele estava lotada já.
Ele estava com algodão na nariz. Muito mais magro. A barba meio azulada, por fazer. O cabelo, cuja franja era jogada na testa, continuava preto, meio azulado, mas estava engomado, não sei se de gel, ou pelo fato de ele não ter tomado banho, porque ficou em coma todo o tempo. O terno era cor cáqui. Camisa branca. Estava com expressão tranquila, como todos os mortos que eu já vi. Eu sentei numa cadeira e chorei, muito, sem acreditar no que tinha acabado de ver, me lembrando dele andar sem camisa e de shorts branco com listras azuis da Adidas pela rua, nos finais de semana.
As pessoas foram chegando ao velório e eu fui tendo dimensão do quanto ele era querido. Não havia mais lugar para parar o carro nos seis quarteirões mais próximos. O povo estava parando do outro lado da avenida já. Era tanta gente e tanto carro que a maioria das pessoas ficou na rua. O movimento durou toda a madrugada. De manhã, saiu até ônibus para o enterro no Vila Formosa. E carros, muitos carros, não parava de sair carro atrás do cortejo. Todos mundo chorava muito, homem, mulher, criança, o afilhado "adotado" dele, que era um neguinho que ele tinha adotado como tio e que representava quase que um filho dele. Deu dó do menino, muita dó. A mãe dele, coitada. O pai sumiu em magreza e rugas e dor.
Ele foi enterrado, todos voltaram pra casa. Nunca conheci alguém tão querido. Ironicamente, me imaginei morta, no lugar dele - coisa que até desejei, naquele dia, que fosse verdade, porque eu presto pra muito pouco nessa vida, e ele prestava demais pra muita gente. Descobri que se tiver seis almas no meu velório para, pelo menos, carregar o caixão até a sepultura, já estarei no lucro. Mas o mais provável é que eu seja enterrada como indigente. Talvez parte da minha família apareça. Alguns porque são insanos e gostam de mim, a maioria irá em respeito e consideração aos meus pais e meu irmão. Amigos? Não acho que algum se dê ao trabalho. Talvez o povo da USP. Talvez a Má. Uns cinco, sete gatos pingados, se muito. Mas não estou me lamentando: eu fiz por merecer.
É, Valdir, ainda bem que você nunca levou a sério a história do nosso casamento...
quinta-feira, 14 de agosto de 2008
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