segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Edson

Meu primo Edson, que era menos de três anos mais velho do que eu, morreu há 10 anos. Dia 6 de setembro, em um acidente muito estúpido de moto, nas comemorações do aniversário da cidade de Tapiratiba, na divisa de São Paulo e Minas Gerais. Ele já tinha se lascado de todas as formas em motos e bicicletas. Quis o destino que ele abaixasse a cabeça alguns segundos, para olhar uma ponteira que tinha botado na sua moto, e entrasse, sem ver, na área de exibição e manobras dos outros motociclistas. Um moço vinha empinando uma moto, e pegou meu primo em cheio. Ele não teve a menor chance. Morreu na hora. Foi uma coisa muito estúpida mesmo...

Ali, vendo o Edinho no caixão, com a cabeça toda enfaixada, sem poder segurar direito as mãos dele porque, com a pressão, eu podia afundar a caixa toráxica dele e provocar uma tremenda hemorragia no meu primo já morto, eu vi que a gente tem hora e lugar e maneira de nascer e morrer pré-determinados. Está no DNA da gente.

Toda a situação é de uma profunda tristeza. Eu não consigo evitar pensar, quando vou vê-lo no túmulo, que a gente podia trocar de lugar. Ele tinha muito a fazer e muitos que gostavam dele. A cidade parou para ver meu primo. Ele era famoso, pelas manobras que fazia com motos. Cada coisa maluca, de dar gosto! Eu nunca o vi se apresentando, mas já vi grupos que trabalhavam com esses shows, e sempre adorei isso. Ele era muito querido. Porra louca, maluquinho, irresponsável, desligado da gente da família, mas muito querido. Uma figurinha engraçada e um moço muito bonito. E cachorro, como todo homem, em especial quando bonito, acaba sendo... rsrsrs

Nas minhas férias, quando criança, sempre ia para Minas e o encontrava, era o único primo que brincava mesmo comigo e era o mais próximo em idade. Ele tinha um Playmobil muito dez, de piratas, e o boneco Falcon. A diversão dele era me encher o saco, reclamando que eu queria brincar com ele e meu irmão e eu era menina. A minha diversão era me considerar superior e demonstrar isso para ele. Porque eu era da cidade grande e ele um caipira. Eu era mais nova, mas estava adiantada na escola. Coisa de criança metida a besta. Um dia, ele me mostrou LPs dele. Pink Floyd e outros rock cabeça que não curto. Notei que ele não era tão caipira assim.

Na verdade, tinha inveja do Edson. Ele não tinha de morrer de estudar nem fazer nada especial para que os pais dele dessem caros presentes e o deixasse fazer o que ele quisesse. Eles presenteavam o Edson independente do meu primo ter sido boa ou má criança. O presenteavam só por ele existir e por amá-lo, mesmo ele sendo desligado e descabeçado. Era um mimadinho total esse meu primo. Eu tinha inveja disso. Muita inveja. Gostava da liberdade do Edson e de ver que ele exercia essa liberdade de maneira irreponsável, mas nem por isso era menos amado pelos meus tios, pelos irmãos e por seus amigos. Ele tinha pencas de amigos.

Às vezes, eu ia pra Minas, a gente já mais grandinho, e não o via, e ficava triste e indignada por ele não estar lá para a gente vê-lo. Ele tinha ido viajar com amigos, ou a gente desencontrava, ele tava na rua com amigos e quando chegava eu já tinha ido pra casa da minha avó. Mas o Edson significa na minha vida um dos poucos pedaços da minha infância que era feliz: minhas férias anuais em Minas, na casa da minha avó paterna, e com os meus outros parentes. Ao ver meu primo morto, é como se esse pedaço feliz da minha infância tivesse morrido também.

O pai do Edson, em particular, é um dos meus dodóis. Considero esse meu tio um exemplo de vida para mim, mesmo eu estando em Sampa e meu tio lá em Minas. O Edson ser filho de quem é amplia meu sofrimento pela perda do meu primo. Eu sofro muito pelos meus tios. Esse meu tio é uma pessoa muito bondosa. Humilde, trabalhador demais, esforçado. De uma honestidade que nunca vi. Uma retidão de caráter que poucos têm. Nunca mereceu passar por tamanho sofrimento. A tristeza dele na missa em memória pelos 10 anos de morte do Edson acabou com meu coração. Chorei por mim, pelo Edson e principalmente pelo meu tio. Queria poder carregar um pouco da dor dele, queria fazer qualquer coisa que aliviasse sua carga de sofrimento. Mas não consigo. Então, só rezei para que Deus e meu primo cuidem dele nas horas difíceis.

A missa foi de uma ironia sem tamanho. O tema da missa em que a gente foi para lembrar do meu primo era a vida intra-ulterina, ou seja, os fetos e as grávidas estavam sendo celebrados na catedral nesse dia 6 de setembro de 2008. O nascimento da nova vida. E eu lá, rezando para uma pessoa morta, pela minha tia e meu tio que perderam um filho. O padre falava que ninguém tinha o direito de tirar a vida de outro. Eu pensava: mas quem achou que tinha o direito de tirar a vida do filho da minha tia e do meu tio? De uma pessoa que minha tia carregou no ventre, igual a qualquer grávida ali, de quem meus tios cuidaram com tanto carinho - até demais? De um menino que, ao ver a mãe toda machucada e o pai meio tonto por causa de um acidente de carro que sofreram, não teve dúvidas em se ajoelhar no meio do asfalto da rodovia, mesmo sendo de noite, para pedir para alguém parar e socorrer seus pais?

Era hora do meu primo, e ele se foi... Tento não me revoltar, e pensar que era a hora e pronto. Mas tem hora que é difícil não ficar brava. Muito difícil. Em especial quando vejo um rapaz jovem, que estava começando a dar um rumo na própria vida, ser levado embora da gente por algo tão besta. Nunca me esqueço da última vez que o vi, ele trabalhando na empresa dele de distribuição de água, com a calça jeans surrada de carregar os galões, a camiseta-uniforme. Ele falava meu nome de uma maneira muito diferente, esticava o "I", era muito bonitinho. Sempre dava três beijos no rosto da gente, e fazia uma enorme curva para trás para dar um beijo na outra face, o que fazia o cumprimento demorar o triplo do tempo. Me mostrou a sua empresa aquele dia com orgulho. Os veículos, as mesas, os galões, a cozinha, tudo recém-reformado e comprado. A noiva dele do lado, igualmente orgulhosa. E eu fiquei orgulhosa por ele também. Enfim, ele estava dando um rumo na vida e estava feliz com aquilo.

E eu pensei, ao sair dali: putz, quando é que o Edson toma jeito e casa? O casório dele vai ser uma puta festa, minha tia vai pirar, vai ser uma churrascada daquelas. Quando ele se casar, a gente vai reunir a família inteira, vai ser igual as minhas férias quando eu era pequena, pensava eu, feliz da vida. Mas o casório não ocorreu. De fato, o Edinho foi motivo de reunião de toda a minha família. Vi isso quando cheguei ao seu velório, no distante ano de 1998. Num relance, vi todos os meus tios e a maioria dos meus primo em volta do caixão, na porta, na calçada. Quando cheguei perto do Edinho, ele deitado, enfaixado, e ainda assim tão bonito, eu falei: porra, Edson, não era assim que você ia reunir a gente, sabia? Você sempre foi um chato comigo mesmo, né?!

O Edson é um caso clássico de quanto não sei viver a vida: uma pessoa que eu amava e amo muito, mas que só percebi a sua importância e o quanto eu gostava dele quando eu o perdi. Sinto falta de você, muita falta, viu, seu pentelho! E desculpe-me por, um dia, ter pensando que eu era superior a você. Nunca fui. Nunca serei. Queria ter tido a oportunidade de dizer isso pessoalmente a você, primo. Um dia, quem sabe...

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